Aquela manhã trouxe um gélido e tímido vento sudoeste que acariciava o pálido corpo molhado daquela bela jovem.
Havia sido envolvida nas teias da incompreensão, abrigada pelo ódio da indiferença, laçada pelo nó górdio do desacordo. Desde muito cedo incomodava, revelou-se um gênio, perspicaz fazia perguntas difíceis e embaraçosas demais para seu velho pai. Um homem rude, porém dito honesto, sincero e que dizia sua verdade a qualquer custo. Cristão fervoroso, mas inflexível, sempre afirmava com orgulho tosco: “tem que ser do meu jeito, a vida não poupa os fracos!”.
A menina nutria um afeto todo especial por Tromélio, com quem convivia e, segundo ela, seu melhor amigo. O cãozinho arteiro, virava de lado, rolava, deitava, sorria, brincava. Aquele pequeno grande amigo amenizava a dor, ouvindo suas queixas nos difíceis momentos e fazendo companhia nas horas da solidão.
Quanto ao seu pai, não tinha como agradar. Nunca conversavam de verdade, apenas trocavam algumas palavras, até porque nunca realmente diziam o que havia de se dizer. Estava ocupado demais para perceber a sua ausência. As paredes da incompreensão e do desamor travestido de um cuidado construído com tijolos feitos de um falso pudor, foram reforçadas pelo reboco da rasa religiosidade e disfarçadas a mal dadas pinceladas na cor de um egoísmo sem vergonha. A ética vigente de uma religiosidade frívola, que reforça a ligação do homem ao próprio umbigo, e que, incentiva odiar mais do que amar, repelir em vez de acolher e afastar no lugar de reconciliar. Quando não, esconder ao invés de tratar. Acabava por acentuar o tempero na já difícil relação familiar.
Foi naquela madrugada, em que as rosadas flores de inverno da cerejeira exalavam um melancólico cheiro adocicado que impregnava o ambiente, em meio ao molhado e brando ar gelado, em que o impassível e elegante termômetro, bem posicionado no centro da rotunda, cruel, indicava alguns graus abaixo de zero, surgiram as rubras marcas, que ficariam cristalizadas num borrão marrom, meio vinho, as quais caminhavam do portão até bem ao fundo daquela inigualável construção. Foi logo no primeiro horário, ao acordar, o silêncio foi quebrado pela gritante trilha cor de café causando uma ensurdecedora sensação de vazio no coração daquele homem. As marcas cravaram um rio carmesim no abismo. Sim, o sombrio vale do extenso corredor o assaltava com um inconcebível alerta. Não estaria acontecendo. O que seria isso? Não ousaria decifrar. Suspenso em seus pensamentos, foi sacudido, atordoado pelo bilhete caído junto a pesada porta em madeira de acácia, ao fundo da casa, escrito num macio papel esverdeado, levemente perfumado com o absinto derramado, exibia desenhos de brinquedos em suas bordas. A mensagem borrada por algumas digitais bem visíveis ao lado do beijo num preto batom, dizia: “Pai, não tenho mais lágrimas para chorar. Perdoe-me, mas não pude evitar. Não sou capaz de atender aos seus pedidos. Não quero mais brigar, ser um problema pra você. Melhor assim! Eu te amava tanto. O que nos distanciou? O que te fez me odiar tanto pai? Não sei. Também não vamos mais nos encontrar e sei que não vou para junto de minha mãe. Sua filha Elisabeth”. Tromélio, impotente e inconsolável, foi encontrado ali lamentando e empurrando o corpo com o focinho, vigiava ao lado da menina, que já não tinha pulso. O aço frio, sorrindo, também estava lá. Manchado! E os nervos molhados e amarelados denunciavam o desastre, a tragédia, sua filha tão querida cometera suicídio! Sem, até então, ter dito de verdade, o quanto ele a amava, percebeu sua estupidez. Pregava vida para tantos, agora sentia-se perdido! Deixou de operar sua própria salvação. Permitiu que a morte entrasse em sua casa. Após inúmeras brigas, desavenças, palavras mal ditas, num torvelinho de incompreensões, desconfianças, irritado, irado, esbravejando, embriagado pela insensatez, na noite anterior, a havia proibido de usar aquelas peças. Não satisfeito, com aquela mesma lâmina de aço, havia cortado todas as roupas de sua única filha.
Naquela manhã se deu conta: nunca quis compreender o essencial do que deveria compreender e por isso, como poderia viver e amar plenamente se não permitia. Seu choro e gritos desesperados em meio a frases desconexas, clamores, um coração quebrado pela intensa dor imprimia aos lábios tardias declarações de amor paternal e lamentos que escureciam o ambiente e tornavam o dia, ainda mais frio.
As sirenes invadiram o recinto e eles chegaram aos fundos, médicos e paramédicos. Quem os chamou? Havia pressa, uma maca, vozes, muitas vozes, uma voz. Aquela voz! Está tudo bem, amigo. Vamos cuidar dela! A ambulância parecia voar em meio ao intenso nevoeiro.
Trinta e três anos depois tudo ainda estava ali, idade avançada, as lágrimas escorriam em seus olhos. Sentado no jardim de inverno ao fundo de sua bela casa, sente o suave cheiro da cerejeira, se alegra em ver seus pequeninos netos brincando naquele lugar. Vamos pai? Com um sorriso, para ir à igreja, Elisabeth o chama. Ele a olha com a costumeira ternura, e responde: vamos! Enquanto caminha ao seu lado, lembra-se: “está tudo bem, amigo. Vamos cuidar dela!”
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“Portanto, de que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Mc 8:36
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Alcançados pela Graça!
C. F. Henriques